Friday, November 4, 2011

Ode ao Gato


Os animais foram imperfeitos, 
compridos de rabo,tristes de cabeça.
Pouco a pouco se foram compondo, 
fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça vôo.
O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade como ele, não tem a lua nem a flor
tal contextura: é uma coisa só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos deixaram uma só ranhura
para jogar as moedas da noite.


Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria, mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu das telhas eróticas, o vento do amor
na intempérie reclamas quando passas e pousas
quatro pés delicados no solo, cheirando, desconfiando
de todo o terrestre, porque tudo é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente da casa, arrogante
vestígio da noite, preguiçoso, ginástico
e alheio, profundíssimo gato, polícia secreta
dos quartos, insígnia de um desaparecido veludo,
certamente não há enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério, 
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso 
talvez todos acreditem, todos se acreditem donos,
proprietários, tios de gato, companheiros,
colegas, discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não. Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.

- Pablo Neruda


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